Quando o avanço da vacinação contra a Covid-19 deixou o Rio respirar um certo alívio, o carioca (de nascença ou coração) quis o ar livre. E à medida que esse povo, que sempre foi de rua, redescobria a cidade, também a reinventava, misturando novos e antigos hábitos para se adequar à realidade do mundo em pandemia. As mudanças, é verdade, foram um golpe para áreas como o Centro, num esvaziamento que fechou escritórios e faliu lojas e restaurantes. Mas, de um canto ao outro, refloresceram parques e áreas de lazer, do Aterro do Flamengo à Praça do Trem, no Engenho de Dentro. E centralidades de bairros com um entorno residencial, como a região do Largo do Machado, na Zona Sul, resistiram mais à quebradeira vivida pelo comércio. Algumas áreas, inclusive, prosperaram.
Presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio (CAU-RJ), Pablo Benetti destaca que a adoção do home office estimulou os bairros cariocas com camadas da classe média, principalmente os que concentram moradores que exercem trabalhos intelectuais, que puderam continuar exercendo suas funções à distância. Para essas pessoas, o comércio e os serviços perto de casa se tornaram ainda mais cotidianos.
— Veja a Cobal do Humaitá: está com um movimento impressionante — diz Benetti.
Ele lembra, porém, que a pandemia ampliou desigualdades sociais. A precarização do transporte público, sobretudo dos ônibus, dificultou deslocamentos não só para o emprego, mas também para o lazer, as compras ou acesso às unidades de saúde. Isso faz, segundo ele, com que as transformações da pandemia sejam experiências diferentes para cada grupo social.
— Há características comuns, como a demanda por parques urbanos e lugares sem aglomeração. Tanto é que a maior parte dos restaurantes tem feito um esforço para botar nem que seja uma mesinha fora do espaço fechado. Essa ocupação, sendo organizada, acho fantástica. Também houve aumento da mobilidade ativa, como o uso das bicicletas. Agora, há de se salientar, a ciclovia em Copacabana leva para o mar. Na Maré, à poluída Avenida Brasil. Então, não é só ter ciclovia. Em frente à Maré fica a Cidade Universitária. Hoje, espontaneamente, o Fundão vira uma espécie de Aterro da Zona da Leopoldina. Poderia ser pensando como tal, para que virasse um parque urbano — analisa o urbanista.
Válvula de escape
Essa ocupação orgânica dos espaços públicos, como ocorre no Fundão, é experimentada também em outras regiões da cidade, como a Quinta da Boa Vista, impulsionada pelo BioParque do Rio, inaugurado este ano. Já o Aterro do Flamengo, que sempre teve grande fluxo de visitantes, passou a ser ainda mais frequentado. Virou a válvula de escape de quem queria sair um pouco de casa, e todos seus espaços passaram a ser tomados de gente: da apelidada de Esplanada Verde, um gramado com vista para o Pão de Açúcar atrás da Marina da Glória, ao quiosque com DJ que anda bombando perto das quadras de esporte, ou então nos jardins perto do Monumento a Estácio de Sá, cenário de piqueniques nos fins de semana.
Mas um empurrãozinho do poder público também pode fazer a diferença. Na Gávea, o Parque da Cidade, que andava meio esquecido pelo carioca antes da pandemia, tem virado esse jogo. Em maio, a Secretaria municipal de Cultura reabriu o palacete, agora restaurado, do Museu Histórico da Cidade, depois de dez anos fechado. Foi o começo de uma retomada gradual, que em setembro ganhou o reforço do cantor e compositor Pedro Miranda, que fez do jardim do museu seu palco. E as manhãs de domingo musicais sob as copas das árvores rapidamente atraíram novos visitantes.
Na Praça do Trem, vizinha ao Engenhão, o motor dessa ocupação é o esporte. Jogador de futmesa que bate ponto toda semana no local, André Oliveira, de 42 anos, conta que, quando as academias de ginástica fecharam, em 2020, muita gente resolveu se exercitar na praça e não parou mais: pegou gosto pelo lugar.
— Aqui tem dança, circuito de funcional, musculação, altinho... Tudo! Está mais cheio agora do que antes da pandemia — diz André.
A prática do esportes ao ar livre, de que o carioca tanto gosta, realmente virou uma febre, assegura o secretário municipal de Esportes e Lazer, Guilherme Schleder. As escolinhas se multiplicaram, e a prefeitura têm tido que tomar medidas para organizar tanta procura. Criou áreas para guardar o equipamento da canoagem havaiana, por exemplo, na Urca, no Posto 6 e no Aterro. E está entregando novos alvarás para profissionais que ensinam esses esportes pela cidade. Até o último dia 17, tinham sido 242 entregues.
— O número de alunos por turma também aumentou, em média cerca de 30%. Beach tennis, canoa havaiana, futevôlei, vôlei... Há muita procura — diz Schleder, que retomou o projeto “Rio em Forma”, com aulas de esporte gratuitas que pretende chegar a cerca de 1.500 professores espalhados pelo Rio.
No Largo São Francisco da Prainha, na Saúde, foi a iniciativa de empresários locais que girou as engrenagens da recuperação. No entorno, com o Centro esvaziado — na esperança de novos rumos com o projeto Reviver Centro, do município — a Orla Conde já não “bombava” como antes. A vizinha Rua Sacadura Cabral, que até o início de 2020 era endereço de festas noturnas, minguava. Até a The Week, uma das mais famosas boates do Rio, saiu de cena.
Os responsáveis pelo bar Bafo da Prainha, no entanto, tiveram a ideia que daria ao Rio um novo point: as mesas foram para a praça, enquanto músicos, como Moacyr Luz, tocavam e cantavam da sacada do estabelecimento. Era o mix perfeito para aliar cultura, diversão e um ambiente ao ar livre, com menos aglomeração.
Surgidos na pandemia
Por falar em bar, muitos dos mais tradicionais do Rio deram adeus à clientela. Mas outros tantos “deram seu nome” na pandemia. Alguns têm assinaturas de peso, como o Bar do Zeca Pagodinho, na Praia do Flamengo, ou a nova unidade da rede Belmonte em Ipanema, na Rua Farme de Amoedo. Na Zona Norte, foi o Alto Méier, na Rua Galdinho Pimentel, que conseguiu manter o ritmo de revitalização iniciado em meados da década passada.
Na boêmia Lapa, as mudanças foram grandes: o antigo Baródromo, por exemplo, não resistiu à pandemia — foi reaberto, depois, no Maracanã — e o imóvel da Rua do Lavradio em que funcionava hoje virou boate, num circuito de casas noturnas LGBTQIAP+.
— Sou um frequentador de carteirinha dos bares cariocas. Agora, tive que praticamente refazer meu roteiro, com tantos que fecharam, tantos que abriram, e outros que deram tchau e depois voltaram, como o Amarelinho da Cinelândia — afirma o microempresário Diego Soares, de 34 anos.
Entre aberturas e fechamentos, ainda são milhares os pontos comerciais fechados, tanto nas ruas quanto nos shoppings. Diretor institucional da Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (Alshop), Luis Augusto Ildefonso não tem dúvidas de que esses centros comerciais foram um dos setores mais afetados pelo efeito do coronavírus na economia. A boa notícia, diz, é que a recuperação está em andamento. A taxa de vacância, por exemplo, caiu para cerca de 5%:
— Atribuímos isso, em grande parte, aos protocolos de segurança implantados, que fez com as pessoas se sentissem mais confortáveis de voltar.
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